Martinha sempre levava na bolsa apertada alguns recortes que gostava. Tinha para si que um documento frio e verde de identidade, definitivamente, não conseguia dizer quem ela era, não lhe traduzia o estado de espírito. Então, caso fosse preciso apresentar um documento, em qualquer ocasião, Martinha mostrava os recortes.
Certa vez, na repartição, o atendente com cara mal dormida lhe pediu: “Documento, mocinha”. E lá foi Martinha caçando um recorte que combinasse com aquele dia. Entregou ao homem o recorte de um dia de sol. Sem paciência, o funcionário devolveu o pedaço de papel e resmungou que aquilo não a identificava. Martinha insistiu: “identifica sim, Senhor. Pois hoje sou desse jeitinho que o Senhor vê. Sou serena, estou radiante e iluminada.”
Noutra vez, Martinha apresentou na entrada para o cinema a imagem de uma girafa distraída, olhando para o nada, porque se dizia nas nuvens, pensando na vida.
Poemas, letras de Chico, arco-íris, guerra de travesseiro, neném no colo, gatinho tomando leite. Tudo podia ser Martinha, menos aquela foto séria e sem expressão do seu documento que, tão equivocadamente, chamava-se identidade, posto que não identificava nada. Ninguém poderia dizer quem era Martinha através dele. Bastava prestar atenção nos recortes para conhece-la.
Sabrina Davanzo
3 comentários:
Lindo, isso!
Bom te ler sempre, ainda mais quando anda inspirada, como ultimamente.
Beijos,
Carol
Coisa mais linda! Amo seus recortes!
Dia de sol para você!
Sua sensibilidade me emociona. Beijo no coração.
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