31 de dez. de 2008

Um ano velho


Hoje é dia 31. Último dia do ano.
Já sinto saudade das coisas que sei que não irão voltar.
Não realizei tudo o que tinha planejado mas, em compensação, vivi momentos que não esperava.
Foram muitas lições.
Conheci pessoas maravilhosas, iluminadas. Convivi com pessoas sombrias e tristes. Vi pouco os velhos amigos, apesar de sempre tê-los no pensamento.
Chorei minhas dores e a daqueles que tanto gosto. Fui amada e tive a alegria de sentir a veracidade desse sentimento em cada olhar.
O mundo mudou. Assisti à fatos que me deixaram perplexa.
Para alguns a esperança renovou as forças. Para outros ela nem sequer apareceu.
Sonhei alto. Voei até onde foi possível.
Mudei de emprego, de estilo, de casa. Reatei um relacionamento.
Aprendi a gostar mais da minha profissão.
Descobri outras realidades. Me tornei mais espiritualista. Pensei mais no próximo. Infelizmente, agi pouco em seu favor.
Tive vontade de desistir, persistir, de me entregar.
Viajei pouco. Li muito.
Cheguei ao meu limite no banco, na paciência, na credulidade. Depois, redefini esses limites. Aprendi que as situações exigem flexibilidade.
Tomei refrigerante.
Fui egoísta, ansiosa. Doei carinho, atenção.
Pensei mais no planeta e prometi fazer a minha parte para colaborar.
Durante esses 365 dias, agi exatamente como acreditei que deveria ser.
Não me arrependo. Foi um grande ano. Cheio de novas experiências.
Em meu calendário, cada mês de 2008 foi suficiente. Passei por todos eles e agora sigo em frente. Nesse ano, sofri alguns arranhões. O que é completamente aceitável quando se precisa atravessar um longo e desconhecido caminho para ser feliz. E eu fui. Muito.
Quanto ao que não aconteceu, não me culpo. Outros 365 dias estão para despertar. São tantas possibilidades que não posso me dar ao luxo de questionar o que não se concretizou.
A partir de amanhã é um novo ano. Não sei o que me espera. Fico com a certeza de que tudo permanece igual, embora com a adorável chance de se fazer diferente.
Feliz 2009!

Sabrina Davanzo




22 de dez. de 2008

No Natal, às vezes o presente não vem...



Durante muitos anos, na véspera de Natal, ela seguia seu ritual.
Esperava por ele ansiosamente. Era um compromisso.
Em todos os lugares sua presença era sentida. Ele viria.
E assim, na noite do dia 24 ia dormir esperando pela visita daquele velhinho tão bondoso.
Quando bem pequena pedia a boneca do comercial, o brinquedo popular da época.
Quando um pouco maior pedia a roupa da moda, o disco preferido.
Ele nunca falhava. Sempre lhe atendia prontamente. O amigo caridoso de barbas brancas parecia simpatizar-se com ela.
O que ela não sabia era que nem todas as crianças eram ouvidas. Para falar a verdade, algumas eram completamente ignoradas.
Como ele podia deixar isso acontecer? Teria ele se esquecido? Talvez o tempo tenha sido curto para visitar os milhares de lares que abrigavam pequenos sonhadores.
Pobre Papai Noel... tão limitado às bicicletas e vídeo games.
Como poderia trazer de volta uma mãezinha que partiu ou um pai que não se conheceu o abraço?
Como alguém já tão velhinho teria forças para carregar uma cesta de alimentos tão pesada ou andar já tarde da noite a procura de um agasalho que coubesse direitinho em cada menino?
Não era culpa sua. Não tinha como se arranjar com tudo isso.
Se já naquela época ela soubesse das dificuldades do Papai Noel, teria se sentido mais agradecida com a vida. Quem sabe até solicitasse ao bom velhinho que atendesse ao menos uma vez aos que tanto pediam e nunca recebiam.
Mas ela não fazia idéia. Como imaginar que a vida não era colorida para todos? Como aceitar que os sonhos muitas vezes não se realizam? Ela era só uma criança.

Sabrina Davanzo


18 de dez. de 2008

Mau dia



Há momentos que, sem querer, ela acaba por magoar as pessoas que lhe querem bem. Não é de forma alguma intencional. Não lhe agrada essa sensação.
De gestos meigos e palavras doces, não é de se esperar que ela possa dirigir a alguém tão querido palavras rudes.
Mas ela, tão igual a tantos outros, é falível e sente, muitas vezes, a fraqueza lhe invadir a alma.
Tudo isso certamente tem a ver com a vida e a forma como ela a encara. É de se compreender que vez ou outra não saiba como lidar com os acontecimentos.
Certo mesmo é só fato de que por mais que se perca, nunca perde sua ternura.
Tão logo essa dor e angústia em forma de tempestade passe, ela já é a mesma de sempre.
Não a tenha mal. Não sofre ela de neurose ou transtornos do humor.
Diga se há no mundo alguém que em dado momento não deixou a mostra suas limitações e falhas.
Esteja certo de que nessas horas tempo é o melhor remédio. Com ele tudo se acalma. A poeira se assenta. O bem-querer se faz novamente presente.
Perdoe-a. Nem todos os dias são bons. Isso a assusta.

Sabrina Davanzo






Livraria




Ela é fascinada por livros. Suas histórias a instigam tanto quanto a forma como cada autor vai, palavra por palavra, dando vida ao que antes era só uma página vazia.

Às vezes, questiona se cada personagem contém um pouco da história de seu próprio criador. Acredita que toda narração, poesia, conto ou versinho que seja vem impregnado de fantasias de quem os escreve. E toda fantasia é feita de pequenos fragmentos de realidade que se perdem no tempo. Pensa no quanto deve ser sofrido... não... não sabe se é essa a expressão correta.. talvez seja doloroso... no quanto há de ser doloroso transcrever para uma folha de papel as dores, amores, aventuras de pessoas e seres que até então só vivem dentro do próprio autor. Como deve ser difícil escolher a palavra certa para se dizer algo. Algo que, se dito de forma errada, não cativa o leitor. E isto, ela confessa: é bem parecido com a vida real. Em algumas situações, dependendo do momento, faltam palavras para expressar uma vontade, um sentimento. Em outras, elas saem aos atropelos e além de não cativar, acabam desencantado. Para ela livro bom é aquele que já passou por várias cabeceiras, estantes, mãos e gavetas. Adora livrarias de livros usados. Estes que antes foram produzidos em série, sem um toque amigo de um leitor fiel , e que agora já trazem suas próprias experiências. Esses são diferentes. Ficam dispostos nas estantes narrando não só a história para a qual foram propriamente criados, como também a de seus donos. Geralmente, em suas primeiras páginas trazem dedicatórias, declarações de amor, amizade explícita, carinho de familiares. Palavras de incentivo, força, estímulo. A história do livro começa já na página de apresentação contando antes a história desses personagens particulares. Em outros é possível encontrar o nome do comprador e a data da aquisição. Quis ele possuir aquela história para si mesmo e datou para jamais esquecer quando foi que ela entrou em sua vida. O que teria ele ou ela feito quando terminou de ler? Guardou por algum tempo? Desfez-se logo? Quanto daquela história ainda o marca? Quanto aprendeu com ela? Ela, que lê muito, guarda palavras, trechos tão absurdamente lindos de personagens heróis e desvalidos. Tem um caderno especial para anotá-las. Não pode confiar somente na memória. Não pode deixar de eternizar de novo e de novo palavras que fazem tanto sentido dentro de si. Talvez, essa seja mesmo a finalidade dos livros. Trazer um pouco de sentido ao caos particular que existe dentro dela. Tanto deve ser, que por muitas vezes se pegou refletindo em como se parece com esse ou aquele personagem. E que bem eles fazem a ela. Não consegue compreender como algumas pessoas não gostam de leitura. Ela, antes de a descobrir, e isso se deu muito cedo, tinha cara dela mesma. Hoje ela tem cara de mundo porque a leitura faz com que cada página lida seja um aprendizado. E cada aprendizado é um pedacinho de horizonte que se ajeita um pouco mais para se tornar infinito. Por isso a paixão pelas letras, pelas histórias e todos aqueles que fazem parte dela. Também se arrisca a eternizar em folhas brancas um pouco de suas fantasias. Coisas simples. Nunca com a maestria dos grandes autores. Mas sempre carregadas de sentimentos. Sentimentos que ela vê despertarem dentro de si, quando lê palavras que a emocionam.

Sabrina Davanzo




15 de dez. de 2008

Por que?



De tanto questionar a vida um dia acabou tendo respostas.
Ela que sempre quis respostas sólidas, concretas, o por que de tudo. Assim mesmo: separado, significando “por qual motivo” esse ou aquele fato aconteceu.
E foram tantos. Afinal, a vida é feita de fatos e a conseqüência deles são os atos.
Para ela, assim como para muita gente, era impossível agir se não houvesse um sentido, uma conexão entre um e outro.
Ela que já tinha enfrentado tanta coisa. Não podia mais viver sem explicação.
Cobrou de Deus, dos céus. Clamou por tudo que é santo e anjo um motivo para sua existência e a de tantos outros nesse minúsculo planeta chamado terra, sabe-se lá rodeado pelo o que.
De tanto esperar pela resposta, passou um bom tempo da vida sem aproveita-la como deveria. Por não entender como o amor funcionava, deixou escapar um belo rapaz que, em vão, esperou ser correspondido. Por não saber se existia um merecimento, recusou uma boa proposta de trabalho. Por não compreender os mecanismos da morte, não pode ser verdadeira em seus últimos momentos ao lado do pai, quando este se viu diante de grave doença.
E assim, de pergunta em pergunta, sem nenhuma resposta, seus dias foram ficando para trás.
Eu, narradora que sou, me atrevi entrar nessa história para, ainda que tarde, orientar esse moça e a quem mais possa se interessar. Ainda que sem autoridade digo que a vida não foi feita para se explicar. Existe sim, uma conexão às vezes mágica, às vezes sombria, em tudo o que nos acontece mas não nos cabe analisá-las.
Deixemos essa tarefa para esta força superior que move o mundo. Fiquemos com o verbo viver e façamos com ele o melhor que pudermos.
Para o bem ou para o mal, nossa história acontece agora. Não percamos tempo com explicações. Se o que acontece em cada dia já está programado ou não, não faz diferença, uma vez que eles chegam um de cada vez. Impossível mantê-los sob nosso controle.
E para terminar, conto a você que nossa amiga não foi tão feliz quanto podia. Questionou demais. E a resposta que teve foi um vazio angustiante onde nada ao seu redor fazia sentido. Esqueceu que seu único e verdadeiro compromisso era viver e fazer feliz aqueles que estavam ao seu redor.

" o essencial é invisível aos olhos."

Sabrina Davanzo

10 de dez. de 2008

Um Lugar


Tantos anos presa àquele lugar que assistiu as suas frustrações e ânsias. Cada parede, cada esquina daquele pedaço de mundo era uma testemunha muda de sua vontade de sair dali.
Quando finalmente conseguiu, achou que jamais voltaria.
Tinha para si que casa é onde está o coração, e estava certa de que o seu nunca estivera naquele lugar.
Arrumou as malas como se arrumasse a própria alma.
Despediu-se com pesar afinal, não era pelas pessoas que não se sentia aceita.
Partiu.
Visitou lugares, conheceu pessoas e amores.
Experimentou sabores e emoções que certamente não conheceria se tivesse ficado onde estava.
Com uma curiosidade infantil, aproveitou cada segundo de estadia.
Depois de tantas velhas novidades a inquietude voltou.
Sentiu, pela primeira vez, vontade de ir para casa.
Ela se lembrou de que nada mais havia de estar do jeito que deixou.
Tudo se ajustou à sua ausência. O que ficou também teve um novo começo. Era assim que funcionava a adaptação.
Voltou. Chegou a tão pouco tempo e já se vê nos reflexos das vidraças, nos sorrisos dos vizinhos de outros tempos.
Foi preciso ter o pé em outras superfícies para conhecer a si mesma e suas origens. Ter certeza do lugar ao qual sempre pertenceu.
Hoje, ela sabe que partir não é uma obrigatoriedade, ir adiante é só mais uma escolha e que a volta é muitas vezes a melhor opção.
Sentir-se em casa não é uma questão de ambiente mas de adaptar-se a si mesma.
Hoje, ela pode estar em qualquer lugar porque sabe onde está seu coração.
Ás vezes, é preciso sair para se encontrar.

Sabrina Davanzo




9 de dez. de 2008

Margarida


Margarida gosta de pensar e sentir de forma simples porque é assim que ela se entende.
Ela nunca soube falar de viagens a Disneylândia nem bailes no salão principal da cidade, mas sempre recorda com carinho as longas noites sentada na calçada com os amigos.
Ela também nunca teve um álbum de fotografia retratando os quatro cantos do mundo, mas seu álbum singelo mantém viva para sempre as amizades conquistadas e as experiências vividas. Tantos abraços e sorrisos.
Quando foi a vez de descobrir o amor, Margarida também não fez escândalo. Ele chegou tão discreto que era como se já estivesse ali há muito tempo.
Sua vida é feita de uma sucessão de pequenas emoções, diferente da grande maioria que vive de gritos e agitações.
Tudo o que Margarida vive é doce e cheio de significado. Reflete sorrisos e lágrimas alegres.
Poucas vezes ela se questionou sobre não viver uma vida intensa.
Ela sempre imagina que a felicidade mora dentro de cada um e esse cada um é quem vai decidir com que medida usa-la.
Margarida prefere que a sua seja assim: “diária e modesta”. Ela prefere não viver cada dia como um capítulo final de novela, mas como se todos os dias a história estivesse apenas começando.

Sabrina Davanzo



6 de dez. de 2008

Encontro



Algumas pessoas são cores e música. Ele é assim. Antes dele ela só respirava devagar.
Então ele apareceu. E as cores e os sons. Cores desbotadas com um quê de dor alegre. Amarelo, rosa, verde. Na parede. Dança no meio do quarto.
Como explicar o que sentem? Fechando os olhos. A resposta está lá dentro, no lugar onde mora o Coração.

Sabrina Davanzo


1 de dez. de 2008

chegou dezembro


Chegou dezembro.
Todas as luzes nas casas e nas ruas se acendem. Uma combinação de cores para lembrar que o Natal está próximo. Enquanto fazem sua coreografia de apagar, acender, piscar, tornam o ambiente cheio de uma magia que não se explica.
As ruas se tornam repletas de verde, vermelho, prata, dourado.
Cores que o ano todo se comunicam separadamente, nesta época se unem para comunicar a chegada de um sentimento maior.
Cartões de confraternização chegam trazidos pelo correio ou pelo e-mail. E assim, virtual ou analogicamente nos sentimos abraçados e amados por aqueles que fazem parte de nossas vidas, ainda que distantes.
Em dezembro, aumentamos infinitamente as arrecadações do mercado comprando lembrancinhas para quem esteve presente ao nosso lado o tempo todo, não importando o que acontecesse.
Sem saber bem porque, nesta época o coração sente um apertozinho e é hora de fazer um balanço.
“o que foi que eu realizei? Em que momento poderia ter agido diferente? Quanto eu aprendi? Quantos amigos fiz este ano? De quantos me afastei?
Quantos sorrisos, abraços ofereci?”
Talvez pela incerteza do que está por vir no próximo ano, talvez por que só agora tivemos tempo para refletir, é nestes últimos trinta dias que fica mais forte o amor que sentimos o ano todo e não demonstramos.
Nessa época, nossa vontade de ser bom se aflora e nos atrevemos até mesmo a pegar uma cartinha de uma criança carente destinada ao papai-noel para realizar seus desejos. Ainda que ela tenha passado necessidade todos os meses, só em dezembro conseguimos voltar nossos olhos para além de nós mesmos e nossas vidas agitadas.
Bendito seja o espírito do Natal. Seja ele um velhinho gordo e bondoso ou um sentimento maior e mais puro que se desperta em cada um de nós.
Só o que desejo é que ele não passe. Que ele, ao chegar janeiro não nos abandone. Só assim a humanidade poderá compartilhar todos os dias essa bondade, essa vontade de ajudar o próximo, o desejo de tornar o mundo um lugar melhor.
Só assim quando o próximo dezembro chegar, ele não irá encontrar enchentes, atentados, fome, incertezas, doenças, maldade.
O meu desejo é de que o próximo dezembro só encontre o amor que um dia ele mesmo despertou.

Sabrina Davanzo


25 de nov. de 2008

Fantasia

Durante o dia, Lena se veste do que ela gostaria de ser. Usa seu melhor sorriso no rosto. Enfeita-se com palavras doces. Enquanto trabalha, encontra conhecidos na rua, almoça no restaurante movimentado, age como se estivesse pronta. Mas, quando o sol cumpre sua obrigação, Lena se sente satisfeita e pára de representar. Deixa de ser o que o mundo a tornou.
Em casa, o sorriso mantido a todo custo se desfaz e dá lugar a uma aparência sem retoques, uma boca linear. Sente-se confiante para se livrar das palavras e gestos afetuosos. Lena se entrega a seus pensamentos e gestos calculados.
Ela não é má ou dissimulada. Apenas não quer que as pessoas saibam que ela não sabe lidar com sua história, com o que a vida lhe reservou.
Ao brilho pálido da lua, na solidão de sua própria companhia, Lena é somente o que conhece de si mesma. E conhece tão pouco.
Não faz idéia do que é capaz de enfrentar por amor. Não sabe o que é capaz de fazer para defender um amigo. Não consegue deixar a emoção leva-la sem se questionar se está certa ou se arriscando demais.
Mas o sol, ainda que entre as nuvens, nunca deixa de aparecer. E aos seus primeiros raios, Lena se enche de coragem de novo. É Hora de brincar de viver.

Sabrina Davanzo


11 de nov. de 2008

O Cata-Vento


Em um pequeno vilarejo, no alto de uma torre, vivia um cata-vento. Imponente, colorido, cheio de energia e solitário. Ficava lá no alto sem uma viva alma para apreciá-lo. O vento, seu únicos companheiro, passava manso, fazia-lhe cócegas e lhe contava que em outros lugares havia cata-ventos enormes que as pessoas apontavam, visitavam e ficavam felizes em vê-los girar a todo vapor. O cata-vento do pequeno vilarejo olhava o corre-corre, a vida lá em baixo e se perguntava por que ninguém era capaz de lhe dirigir nem mesmo um olhar. Com o passar dos anos, já não tinha mais vontade de brincar com a brisa nem lutar contra o vento forte. Olhava ao seu redor e não via mais que velhos telhados encardidos. Percebia que o sol, de quem se considerava próximo, desbotava suas cores e o deixava mais abatido. Vivia pensando no quanto era desnecessária sua existência. Foi então que um dia uma leve corrente de ar que passava por ali tocou suas hélices e lhe contou que os céus reservavam para aqueles lados uma imensa tempestade. Furacões e ventos que assoviavam alto arrasariam com todas as coisas, árvores, crianças e alegria daquele lugar. O pequeno cata-vento viu nessa confidência sua chance de conquistar o carinho das pessoas. Sentiu que poderia ser útil e quem sabe até importante. Afinal, salvaria a pequena cidade. Durante três dias o cata-vento girou com todas as suas forças, sem parar um segundo, para anunciar a chegada do inevitável. Mesmo sem vento algum, se agitava. As pessoas que olhavam para o alto da torre achavam que ele havia ficado louco. Não entendiam como e por que ele girava sem parar nos últimos dias, mesmo quando o ar estava mais parado que uma carroça sem bois. Exausto, o cata-vento acabou desistindo. Deixou-se abater e ficou a espera do pior. Nenhum morador, visitante, criança ou idoso esperava pelo vendaval que chegou em uma madrugada. Zunindo a melodia da morte, arrancou tudo o que viu pela frente. Não sobrou nada. Nem a pressa dos que passavam todos os dias pelo cata-vento e não o notavam foi perdoada. Ele também foi levado. Com as rajadas, desprendeu-se do alto da torre e foi arrastado pelo céu afora. Teve medo, mas pela primeira vez na vida sentia-se em paz. Não queria mais consideração, nem carinho. Desejava apenas se perder em sua insignificância. Acabou caindo em uma outra cidade. Por lá, todos já sabiam do furacão. Olhavam-no maravilhados por pensar que ele havia sido trazido pelo vento. Era um sobrevivente. Talvez o único. O povo dali, que não era dado a acreditar em coincidências, entendeu aquilo como um presente divino e tratou de colocá-lo no alto da torre da capela. Ninguém fazia idéia da sua bravura nos dias que antecederam a tragédia. Ninguém poderia imaginar o cata-vento esgotando todas as suas energias para prevenir uma vila ingrata. Em sua nova casa, tornou-se uma relíquia, símbolo dos que resistem bravamente às adversidades. Todos o apontavam, admiravam, elogiavam. Finalmente, ele conseguiu o queria. Sentia-se feliz. Guardava para si o velho ensinamento: cada qual, ao seu momento, tem sua importância na vida do outro.

Sabrina Davanzo


10 de nov. de 2008

Novo Céu


Para Larissa, Sabrina, Thaís, Marcel, Marcelo, Thiago, Robson, Lucas, Jonathan, Neuza, Tancredo, Leandro e todos os outros:

Olhar que não retrata o que vê. Olhos que não expressam brilho, medo, dúvida. Apenas se perdem infinitamente atravessando a própria imagem diante deles.
Mãos finas e frágeis. Um simples toque parece ser capaz de rasga-las, arrancar-lhes a pele.
Mãos que não exprimem força nem direção. Buscam o vazio, se agarram ao que está por perto sem nenhuma consciência.
Força sem medida, desajeitada. Força que assusta em meio a tanta desconexão.
Curiosidade inocente, bestial. Pureza.
Sorrisos, risadas, gargalhadas dispersas em salas sem graça alguma.
Pés que nunca caminharam, nunca tocaram o chão, não experimentaram a liberdade de ir e vir.
Faces cizudas, rostos disformes. Feiúra que esconde a beleza presente na infância.
Não há traços de pai e mãe. Somente marcas de quem carrega dentro de si toda uma existência emudecida. Uma vida velada por gritos guturais, choro, letargia.
Não há ânsia, vontade, desejo. Não existem sonhos, nem esperança.
Existe a dura realidade de uma pequena falha em uma máquina tão divinamente perfeita: o corpo.
Não procuram motivos. Não questionam o destino. Não exigem uma reposta.
Vivem todos juntos sem jamais conhecerem uns aos outros.
Tudo é tão limpo e cheira vida estagnada, guardada no fundo de um guarda-roupa sem nunca ter sido usada.
Lágrimas, sono dentro de um bercinho vez ou outra decorado com brinquedos que naquele contexto parecem tristes e tão sem gestos quanto o próprio companheiro.
Placas identificam alguns que não possuem identidade. Impossível reconhecer seus defeitos e qualidades.
Tudo parece triste e vazio mas ao mesmo tempo inspira uma enorme felicidade de ser o que se é.
Lição de vida e resignação. Espelho para nossas próprias falhas, para nossas reclamações sem sentido, para nossa preguiça sem motivo.
Para todos eles, um Novo Céu habitado por anjos vestidos de branco que lutam diariamente para manter viva a faísca do existir que palidamente anima cada um que está ali.


Sabrina Davanzo


9 de nov. de 2008

Pequena felicidade



Tem dias que ela sente uma felicidade que não sabe explicar. É uma alegriazinha que invade seu coração, seu sorriso, amortece seu corpinho pequeno. Tudo ao redor se torna sereno, ganha uma tonalidade diferente, até o ar.
Quem dera essa felicidade durasse a vida toda. São só uns instantinhos. O bastante para que ela se interesse pelo mundo e suas cores.
Ela nunca sabe quando essa felicidade vai chegar. Mas também não a espera. Ocupa-se com sua vida simples e deixa que a emoção a surpreenda. Ela acha mais seguro assim, pois não corre o risco de se machucar.
Quando acontece, ela se enche toda. Pensa na família, nos amigos, no amor. Compartilha, ainda que por pensamento, com todos os que fazem parte dela esse sentimento.
Essa felicidadezinha é intensa. Mas não se demora. É o tempo de dar um sorriso, um suspiro.

É o tempo de se sentir mais perto do que chamam de céu.

Sabrina Davanzo






6 de nov. de 2008

Presente



Um dia gostaria de presentear meus amigos com o mundo.Alguns iriam pensar: “nossa, mas esse mundo tão desse jeito, tão daquela forma...”Mas sim. Daria-lhes o mundo.Nenhum deles, nem o mais ousado, seria capaz de visitar cada canto do mundo. Portanto, seria um presente bem grande.
E ainda que visitasse, jamais conheceria todas as possibilidades que cada canto pode oferecer. Então, seria como um presente infinito.
Oferecendo o mundo aos meus amigos eu lhes daria mais de um bilhão de sorrisos. logo, meu presente não permitiria a solidão.O mundo aos amigos. É como se presenteando com o mundo eu lhes desse a vida.Um mundo para viver. Infinitas estrelas, milhões e milhões de galáxias, planetas e mares.Seria um belo presente, feito por Deus.Queria dar o mundo aos meus amigos.

Sabrina Davanzo


4 de nov. de 2008

Na ponta dos pés



Às vezes a gente precisa se pendurar na pontinha do pé para chegar mais alto. Chegar naturalmente, sem a ajuda do salto.
Uns centímetros a mais é capaz de nos livrar da derrota, de mudar um destino. Não importa se o pé dói, a gente acostuma. Não importa se o desequilíbrio ameaça, mais cedo ou mais tarde a gente encontra o ponto.
É levantando o pé que se pega a fruta, que se enxerga na multidão. É na pontinha do pé os passos mais lindos do ballet, é com esse esforço que se alcança um abraço maior que a gente. Na euforia, é levantando o pé para o ar que a gente se exalta.
Quem cala tem os pés plantados no chão. O peso não deixa a gente se arriscar e quem não arrisca não sabe o que é chegar ao alto. Acaba trocando os pés pelas mãos. Usa o tato para caminhar entre o desconhecido.
Foi impulsionando os pés que muita gente caminhou por onde não imaginava, alcançou o que procurava.
Que Deus me permita ter pés que eu mesma possa guiar e não que eles sejam simplesmente levados. Não quero manter meu calcanhar grudado à textura confortável do sapato, maldita acomodação.
Aquele que busca o óbvio se garante, mas não vive. Quero ter a força necessária para caminhar na ponta dos pés, lá em cima, onde aos mãos não alcançam, onde os olhos não enxergam, onde só o momento da chegada revela o que existe. Não quero temer a insegurança. Ela faz parte da vida, ao contrário do pé no chão, que denota o significado de uma mera existência.

Sabrina Davanzo

3 de nov. de 2008

Ansiedade

Se ela sofria de ansiedade nunca soube. O fato é que sentia “um não sei o que” que nada resolvia. Dormir, não conseguia. Ler, não concentrava. Sair, só piorava.
Tinha as mãos suadas e o fôlego apertado na garganta. Sensação de palpitação. Doía a cabeça, tremia os nervos, amargava a saliva. Tudo por querer saber como as coisas aconteceriam. Tinha pressa. Era vital saber antecipadamente. Tentava desviar o pensamento, assistir à novela, falar de amenidades, mas o olhar era sempre estatelado como se a qualquer instante fosse vislumbrar uma faísca do futuro. De tanto querer saber, tornou-se repetitiva. O tempo todo comentava, sem medir o tom de voz: “ai! Não vejo a hora!” , “ai! Como vai ser?!” Não conseguia mais comer. Alguma coisa revirava suas víceras, nauseava constantemente. Não tinha a menor consideração com qualquer outra coisa: família, amigos, muito menos para a vida. Na verdade, nem viu seus dias passarem. O Espírito inquieto parecia não caber mais dentro do corpo de tanta impaciência. Morreu de infarto. O Coração fraco não agüentou a pressão. No laudo médico, a causa para a falha do órgão foi registrada. Está lá: morreu por não saber esperar.

Sabrina Davanzo


2 de nov. de 2008

Esse seu voar



Em plena quarta-feira à tarde, dei de cara com ele caminhando pelo meu corredor. Fiquei observando de longe quase sem respirar, pois tinha medo de assustá-lo com minha presença. Reparei nos seus passinhos ligeiros, cabecinha movendo de um lado para o outro, atento a qualquer movimento ao seu redor. Não me notou. Seguiu em frente.
A uma certa altura, levantou vôo baixinho (a conta de economizar alguns passos) e pousou na cabeceira de minha cama. Corri de leve pelo corredor, evitando fazer barulho e me escondi entre a porta. Pela fresta, pude ver que ele ficou imóvel, só a cabeça movia como se estivesse esperando por alguma coisa que estava prestes a chegar, talvez até atrasada. Eu, de onde estava, reuni toda minha coragem e me coloquei a sua frente, no meio do quarto. Ele me encarou num misto de espanto e admiração. Olhou profundamente em meus olhos, levantou vôo e saiu pela janela. Tive certeza de que ele estava ali a me esperar. Eu que tinha tanto para descobrir… Queria saber sobre a altura do vôo… Será que cada um tem sua forma de voar? Será que voar é um merecimento? E se for, quanto tempo se deve esperar? Não tive tempo. Aquele minúsculo passarinho esteve ali, em frações de segundos, só para me olhar.

Sabrina Davanzo


31 de out. de 2008

Modinha

Houve um tempo em que os meninos jogavam bola
As meninas usavam estola
Os jovens cheiravam cola.

Houve um tempo em que pais separados era aberração
Apertar a campainha e sair correndo era diversão
Ficar de castigo era normal para quem não fizesse a lição.

Houve um tempo das moças usarem saias rodadas
Os rapazes, calças apertadas
E os incompreendidos, jaquetas rasgadas.

E assim, de tempo em tempo o mundo se transforma.
O povo segue a tendência
mesmo que não combine com sua aparência.
Na verdade, o que importa é estar dentro do contexto
Seja ele toda uma filosofia ou só um adereço.

Sabrina Davanzo

30 de out. de 2008

O tamanho das coisas


Quando a gente é pequeno, do tamanho de um pingo de chuvaTem mania de achar que o mundo é grande Do tamanho de uva.Nossa, que mundão! Se aventurar por ele só se pegar na mão.Quem pega na mão e aperta Chega ao coraçãoAí o mundo cresce Fica do tamanho do infinitoJá não se pode mais medir o tamanho que ele tem.Mas isso também não importa Não saber o tamanho do mundo Nunca fez mal a ninguém.

Sabrina Davanzo



28 de out. de 2008

Caminhos

Sempre ouvi dizer que às vezes é preciso escolher um caminho.
 O problema é que a gente nunca tá pronto. Aí acaba escolhendo o caminho errado ou demorando muito na decisão.

Sem contar aqueles que simplesmente se ajeitam ali onde pararam e nunca mais seguem.
 Pior deve ser para aqueles que, por mais que tentem, não conseguem enxergar a saída.
Se o caminho escolhido não for o certo, sempre é tempo de voltar.
A estrada permite. A gente deveria se sentir mais seguro sabendo disso.
Mas voltar atrás pode parecer admitir que errou.
Às vezes, o erro parece um crime. Não deveria ser assim...
Quantos erros foram necessários para só então um avião voar?
Eu confesso que erro. Mas confesso assim.. genericamente.
E o caminho... se a gente entendesse que ele é feito de erros e acertos... Teria mais coragem de se aventurar.

Sabrina Davanzo

26 de out. de 2008

Conjunto





Hoje tive uma lembrança súbita. Lembrei da minha própria existência.
Veio-me a plena consciência de que faço parte de um enorme mundo habitado por outros tão iguais e tão diferentes.
Impossível continuar olhando só para mim.
Como não enxergar ao redor onde existe tanta vida quanto dentro de mim mesma? Como não pensar que em cada um que vira uma esquina pulsa um coração com seus ritmos acertados?
Eu que sou várias, de repente me vi em cada um desses peitos arfantes que carregam dentro de si um universo de experiências, temores, sonhos.
E eu que sou dúvidas, me vi em cada um desses pensamentos.
Milhares de rostos se cruzam todos os dias e muitos nunca voltarão a se encontrar. Só aquele instante. O momento de atravessar a avenida, a entrada e a saída.
Como não captar a essência de um ser tão parecido com você, que funciona com os mesmos mecanismos...
Indiferença. Por ser indiferente ontem não notei o sorriso da velhinha que se equilibrava sobre um salto, talvez saudosa dos tempos da juventude.
Por indiferença ontem também não notei o olhar desolado da mãe que saiu para trabalhar e deixou o filho ardendo em febre em casa.
Eu. Eu que tenho os maiores problemas do mundo. Todos eles sob minhas costas tão frágeis.
Eu que sou incapaz de olhar para quanto peso há nas costas dos meus semelhantes. Hoje me dei conta da nossa fragilidade.
Senti vontade de gritar no meio da calçada que eu não sou melhor que ninguém. Queria poder abraçar todos, inclusive a mulher mal vestida e suja que espera esmola no sinal.
"Pode me dar uma moeda?" Acha-se ela digna somente dos restos?
Não merece a mesma parte que me cabe, uma mulher tão igual a mim?
Observando as pessoas vejo que tenho um pouco de cada uma delas, e quanto mais tento ser eu mesma, mais me distancio dessas tantas outras que me dão forma.
Não quero ser indiferente. Quero me reconhecer em cada rosto no meio da multidão. Quero ter a certeza de que caminho entre seres tão humanos quanto eu mesma apesar de, na maioria das vezes, agir por um instinto quase animal.

Sabrina Davanzo




Dicionário

Saudade sempre dá quando se olha para trás e pensa no que não volta mais. Ou se volta, vem diferente. Nunca mais é como antes. Nunca mais é aquele mesmo instante. Saudade do sorriso da melhor amiga que, mesmo que ainda esteja por perto, o sorriso já mudou. Fez clareamento, usou aparelho, o dente que era torto, endireitou.
Saudade de agir inocentemente, sem pensar.
Inocência. Palavra pura que só existe na infância. Não combina com gente grande.
Só a saudade... saudade de não ter malícia, não enxergar a maldade.
O tempo voa e enquanto se vive é preciso segurar em sua mão e ir deixando tudo. É daí que nasce a ausência.
Ausência. Palavra que dói. É um não estar que fica na memória lembrando que um dia existiu.
Existência. Por causa dela se descobre o dicionário.
Saudade.. pés descalços no quintal.
De repente, você está diferente. Saudade de ser aquele outro alguém que você já foi algum dia.
Solidão. Olhar para dentro e não encontrar nem a sua companhia.
Solidão é palavra que ninguém queria. Provoca dor na alma. Difícil de sarar. Difícil se acostumar.

Sabrina Davanzo

23 de out. de 2008

Salto a superfície


Às vezes, sinto-me em águas infinitamente profundas.
Sinto o calor do sol aquecendo as ondas e vejo o jogo de cores que se forma no espelho d’água. São momentos de indizível beleza.
Olho ao meu redor e vejo todos ocupados com suas respirações e nados sincronizados.
Se ao menos eu me destacasse. Se eu pudesse mostrar que por trás de escamas tenho sentimentos e emoções...
Mas afinal, as escamas são necessárias para lidar com a correnteza. Não convém expô-las.
Aquele que faz uso da expressão “peixe fora d’água”, não compreende quão mais difícil é se adaptar às profundezas.
Quem me dera ser digna da superfície, subir à tona e respirar ar puro até que o cansaço tome meu corpo.
Aqui embaixo é tudo tão denso.
Talvez por medo, atenho-me a minha humilde existência. Sei que cabe só a mim lutar para que o ar entre, ainda que exausto, pelos meus pulmões e chegue a cada recôndito canto de minha existência.
Admiro aqueles que têm coragem de saltar. Mas não me iludo.. sei que não são heróis e sim meros desesperados que sucumbiram diante de suas provações no mar de possibilidades que é a vida.


Sabrina Davanzo


21 de out. de 2008

Flor menina

Todos os dias ela saia para ver a flor.
Era um olhar tão profundo. Olhar de mãe que vê o filho crescer.
Depois, lentamente, entrava toda para dentro de si e ficava em silêncio.
Ela procurava a textura da flor dentro dela. Em algum lugar deveria existir aquela maciez.
Ela se sentia dura com a vida. Não chegava a ter pena de si mesma, apenas sentia não sentir.
Olhava seu reflexo e não se via. Isso é possível?
Ela dizia que não refletia nem em pensamento, nem em fisionomia.
Por isso, a flor. Textura que vem com beleza e reflexão.
Só não é possível alcançar seu cheiro. E de nada adianta os perfumes, soariam artificiais.
Deve ter a ver com a terra ou algo sobre ser criado por Deus. Ela procura a simplicidade de ser nas coisas criada por ele. Ela imagina que se igualando a flor talvez se aproxime um pouco mais daquele que criou as duas sem nenhuma distinção.


Sabrina Davanzo

20 de out. de 2008

Manual da vida

Tem gente que tem mania de pensar na vida. Fica ali com aquela carinha de paisagem, quadro na sala de estar.
Será que a vida foi feita pra se pensar ou simplismente se viver?
Eu, quando penso na vida, dói tanto. Não é fácil pra mim. É muito tempo, muito acontecimento.
Onde se compra um manual de como se viver? Tem um capítulo especial sobre como não magoar as pessoas que a gente ama? E outro sobre como ter sempre por perto aqueles que teimam em não estar?
Imagino que um sobre a infância é muito importante. Um capítulo com cheiro de tuti-fruti.
A vida é boa... mas dá medo. Tem que respirar fundo, contar até três e ir correndo de olhos fechados. Quando se pára para olhar, pode ser difícil seguir.
Ainda bem que existem os sonhos. É bom fugir da realidade de vez em quando.

Sabrina Davanzo


Sobre bolinhas e quadrados


Durante a madrugada eu acordaria e colocaria uma saia rodada de bolinhas bem pequenas, calçaria um sapato boneca e sairia pelas ruas de paralelepípedo onde cada pé pudesse pisar firme um a um os blocos de pedra. Andando assim, os que ainda estivessem àquela hora acordados achariam que eu estava fazendo uma espécie de coreografia.
Passo a passo, eu cantaria bem baixinho para não incomodar os que já estivessem sonhando. Fecharia meus olhos e cantaria por dentro. Só as notas mais graves resistiriam e, saindo de mim, se misturariam ao hálito embriagado da madrugada.
Eu me permitiria abrir os braços e olhar as estrelas. Adoraria se encontrasse um cachorrinho tão sem dono quanto eu naquele momento. Eu o acariciaria e o convidaria para caminharmos juntos sobre as pedras tão perfeitamente quadradas. Eu sentiria seu roçar em minha saia confundindo as bolinhas.
Poderia até chover. Cada gota seria bem-vinda. Se você estivesse ali, veria que eu estaria sorrindo. Sorriso com gosto de chuva. Poro a poro se encharcando. Não faria frio. Tudo seria quente e bom. Até a música que insistia em embalar o tecido da minha saia. Se me perguntassem, era assim que eu definiria o que é a felicidade ao som de uma canção que sempre diria “we will take you home...”

Sabrina Davanzo

Como o vento

Aos pouco, ela vai aceitando a idéia de ser o que se tornou.
Levou anos, mas até hoje quando se olha parece que toda essa transformação se deu em alguns minutos. Tudo soa tão novo e assustador.
Para tentar se acostumar, ela gosta de andar olhando para cima. Assim é possível enxergar os galhos das árvores. Gosta de reparar como o vento toca as folhas e leva um pouco de suas impressões embora.
Para onde vai o vento? O que faz ele com todos os cheiros, sabores e cores que toca? Divide ele com alguém essas experiências?
No fundo, ela se sente um pouco vento. Tem acesso aos mais variados sentimentos, fatos e pessoas, mas não retém nada para si. Não sabe como conservar suas emoções.
Deveria guardá-las em uma caixa de madeira com um cadeado dourado? Não. Correria o risco de perder as chaves e deixar tudo ali dentro para sempre. É difícil saber o que fazer quando se está diante da vida. Ainda mais quando não se é permitido experimentar. Pensou nessa possibilidade, pronto: Já se viveu.
Por isso, o vento se parece tão perdido. Está em toda parte, sem de fato estar em um só lugar. Faz redemoinhos, exalta-se. Sábios são aqueles que conseguem guardar dentro de si o valor de todas as sensações. Aqueles que fecham os olhos e conseguem descrever o significado de pisar descalço na terra, o cheiro de se deitar no capim.
Ela só sabe falar de chão vermelho e velhos colchões. Mas ela não desiste. Não perde a doçura de assim como o vento, tocar tudo que está ao seu alcance.

Sabrina Davanzo

Ai

Ai, que hoje estou com pressa. Pressa de mim mesma. Há quanto tempo não me vejo? Lembrei agora da caixinha de música. O que faz a bailarina até que a ponham para dançar? Estaria o cheiro da caixa a entediar? Ai, que hoje me senti um noivo apaixonado à espera no altar. “E essa felicidade que não chega... quanto tempo ainda hei de esperar?” Ah, lembrei também dos relógios. Bem na hora que a corda está para acabar. Sente ele o seu próprio fim? Consegue não se desesperar? Penso que a pressa e a vontade empurram o caminhar. Ai, que hoje vi que a música não pára. É constante. Quem me dera ser música. Há quanto tempo sou apenas nota que não sai do lugar?

Sabrina Davanzo

19 de out. de 2008

Balão





Ela tremia toda segurando a linha entre os dedos magros. Ao final da linha, lá em cima, um balão vermelho.
Andando pela calçada, levando aquele objeto delicado, ela era alvo de olhares furtivos. Afinal, ninguém assume um balão além das crianças e dos vendedores. Mas isso não a incomodava. Pelo contrário, essa atitude esperada das pessoas era o que a fazia sentir-se diferente, corajosa, superior.
Parou em plena avenida movimentada. Ruídos de carros, barulho de vida. Sim, porque se faz muito barulho enquanto se vive. Foi então que ali, no meio da avenida, sentiu a linha frágil escapar-lhe pelos dedos. O balão tomou altura, subiu.
Lá de baixo ela o via se misturar aos outdoors, aos fios da companhia elétrica. Tão cheio de sopro aquele balão… os balões são feitos do sopro que extraímos de dentro da gente. E aquele balão vermelho ia ganhando altura com o sopro dela. Se afastando, levava o que fazia a diferença na menina. Ela que usava balão do lado de fora.
Quando ele sumiu de vista, ela se pôs a caminhar encurvada. Não saberia ser sem ele nas mãos. Sentia-se envergonhada por não ter mais o balão que é sopro, ar. Ainda mais vermelho. Vermelho que é vida, sangue na veia. Sem ar a gente não vive.
A vida é feita de sopro que entra e sai e sangue que corre. É como se dentro da gente existissem milhares de balões vermelhos. A gente sente quando um ganha altura e se vai. Quando isso acontece a gente perde o ar, perde a cor.
Quando isso acontece é preciso um tempo para retomar o ritmo e a respiração. É difícil voltar ao normal quando se perde um balão.

Sabrina Davanzo





Auto-retrato





Principezinho subiu o morro e viu o mundo. Contemplou, ao longe, toda a vastidão do que acontece lá fora. Descobriu que a felicidade não é colorida como os quadros da sala de estar. Ela desbota, envelhece e mancha.
Principezinho voltou. O colo da mamãe é mais seguro. De lá, tudo é mais bonito. Não há monstros para enfrentar.
Principezinho acha que o tempo será generoso com ele e, por isso, adia o confronto. Só mais um dia...
Assim, no seu mundo lúdico, o peso é como algodão-doce, a dor sara com um sopro e a ameaça é só uma sombra na parede do quarto.
Ah, Principezinho! A vida é tão mais vasta que esse seu carrossel. O seu dinamismo vai além do sobe-e-desce da roda-gigante. Para ser feliz, é preciso muito mais que velhos homens fantasiados de palhaço. E para estar seguro não basta se trancar dentro do guarda-roupas ou se esconder debaixo da cama.
O que seus olhos viram, seus pés ainda não percorreram. Há outros tipos de toque além do da mamãe. Existem mais cheiros que o de chocolate quente com biscoito. E as brincadeiras são mais reais do outro lado.
Doce menino, o morro é menos ameaçador do que parece. Ele nem se compara aos vilões dos quadrinhos. Mas para transpô-lo, é preciso ter a grandeza dos gigantes e a coragem dos super-heróis.

Sabrina Davanzo